30 julho 2010

O Freeport nunca existiu?

Processo foi interrompido a meio. Ordem para parar foi dada pelo vice-PGR, que está em situação ilegal. Ficou quase tudo por apurar: não foi possível seguir o rasto do dinheiro nem sequer saber a quem pertenciam nomes de código como Pinocchio ou Gordo.

Vice-PGR impede inquirição de Sócrates

Os magistrados do DCIAP queriam ouvir Sócrates no inquérito ao caso Freeport, mas não tiveram tempo. Receberam ordem para encerrar o caso até 25 de Julho.


A Decisão, tomada a 4 de Junho pelo vice-procurador-geral da República, Mário Dias Gomes, de ordenar o encerramento do inquérito ao caso Freeport até 25 de Julho comprometeu, segundo os magistrados Vítor Magalhães e Paes Faria, o apuramento cabal de todos os indícios e dúvidas em torno do licenciamento do centro comercial de Alcochete.
A ordem do vice-PGR - que terá tido em conta o facto de o segredo de justiça sobre o inquérito terminar a 27 de Julho - impediu que chegasse, em tempo útil, a resposta às cartas rogatórias enviadas para paraísos fiscais, sobre informação de várias contas bancárias. Mas sobretudo, impossibilitou a inquirição de José Sócrates, que à data dos factos era ministro do Ambiente, e de Rui Gonçalves, seu ex-secretário de Estado.
Os magistrados do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), responsáveis por quatro anos nas mãos da Policia Judiciária de Setúbal sem avançar), fizeram mesmo questão de, no despacho de acusação proferido esta semana, elencar as 27 questões que pretendiam colocar ao primeiro-ministro sobre o caso. E que revelam que, para o Ministério Público (MP), Sócrates tinha muito para esclarecer.
Entre essas questões, os dois titulares do inquérito queriam que o PM, além de explicar o seu conhecimento sobre todo o processo de aprovação do Freeport, confirmasse, por exemplo, « a recepção, na sua residência de uma carta que lhe terá sido dirigida pelo arguido Manuel Pedro, tratando-o por `Caro amigo’ ». E explicasse «o teor das declarações prestadas por Hugo Monteiro» (seu primo), que afirmou ter ido a sua rasa, em 2004, pedir a autorização de Sócrates para criar um endereço eletrónico com o seu nome, de forma a conseguir um contrato com o Freeport.
A verdade é que a leitura do despacho final deste inquérito, com quase 300 páginas, permite perceber que, entre a convicção dos magistrados sobre os responsáveis de todo o caso e a sua decisão de acusar apenas dois arguidos e absolver outros cinco - nos quais nunca esteve incluído Sócrates, nem o seu antigo secretário de Estado -, vai uma grande distância.
Curiosamente, o nome do PM só é mesmo referido, como `alvo’ das dúvidas dos investigadores, neste despacho do MP Porque o relatório final da Judiciária, que Vítor Magalhães e Paes Faria salientam ser «inconclusivo», não faz qualquer referência à necessidade de questionar Sócrates ou Rui Gonçalves sobre o licenciamento do Freeport.

Sempre presente
O desfecho deste inquérito não permite, por isso, dizer que o caso foi concluído e que tudo se esclareceu - como pretendeu o PM, nas declarações feitas esta semana, depois de saber da decisão do DCIAP
Ao longo do despacho de acusação, multiplicam-se as contradições entre os depoimentos de suspeitos e testemunhas, não se explica a maior parte dos movimentos de milhões de euros em numerário e nem sequer se consegue esclarecer quem eram «Pinochio», o «Gordo» ou «Bernarda» -nomes de código várias vezes referidos na correspondência electrónica trocada entre arguidos, quando falavam de subornos para desimpedir os entraves criados ao licenciamento do outlet.
Em contrapartida, os magistrados registam, por exemplo, que, entre 8 e 24 de Janeiro de 2002 - dois meses antes da aprovação do projecto - realizaram-se diversas reuniões no Ministério do Ambiente, designadamente com a presença do ministro, secretário de Estado, presidente do Instituto da Conservação da Natureza (…) e José Dias Inocêncio (então presidente, eleito pelo PS, de Alcochete), além dos arguidos Charles Smith e Manuel Pedro» e de dois representantes da empresa inglesa. Descrevem o facto de o tio de Sócrates, Júlio Monteiro, ter declarado que recebera, em Dezembro de 2001, um contacto telefónico de Charles Smith, «referindo que um gabinete de advogados lhe estava a pedir `quatro milhões’ para aprovação do projecto Freeport e que, na sequência desse contacto telefonou ao seu sobrinho e ele, imediatamente, se disponibilizou a receber Smith no seu Ministério». E citam uma intercepção telefónica de uma conversa de José Manuel Marques, à época responsável do ICN (constituído arguido no inquérito e agora ilibado), ocorrida em Fevereiro de 2005, onde este afirma: «A investigar isto, vai é bater à porta do Sócrates, foi quem aprovou o Freeport, em tempo recorde em três meses e sei que o gajo pediu três milhões de contos e que lhe pagaram quinhentos mil». Aliás, o despacho do MP que nunca assumiu ao longo desta investigação que o primeiro-ministro era suspeito - faz até questão de incluir uma referência a «diversos» depoimentos (pelo menos onze estão identificados) que afirmam «ter tido conhecimento, por ouvir dizer, que diversos titulares de cargos públicos portugueses, entre os quais o então ministro do Ambiente, bem como diversos partidos políticos, haviam recebido dinheiro, no âmbito do processo de licenciamento do Freeport.

Extorsão e fraude fiscal

Manuel Pedro e Charles Smith, que representaram a Freeport no processo de apresentação e licenciamento do projecto, são, então, os únicos acusados neste inquérito. O MP imputa-lhes a prática do crime de extorsão, por terem exigido à empresa inglesa a entrega de elevadas quantias em dinheiro, sob pena de o Freeport não conseguir ver o seu projecto aprovado pelas autoridades nacionais. O MP entende ainda haver fortes indícios da prática de vários crimes de fraude fiscal por parte dez pessoas envolvidas no caso - entre eles, os ex-presidente e vice-presidente do ICN, Carlos Guerra e José Manuel Marques, o arquitecto Capinha Lopes, o ex-autarca de Alcochete, José Dias Inocêncio, e o tio de Sócrates, Júlio Monteiro. Ficaram sem resposta os pedidos de informação do DCIAP sobre contas em paraísos fiscais».

Felícia Cabrita
Sol, pp. 1-4, sexta-feira, 30 de Julho de 2010