22 março 2015

João Araújo - A história do advogado de José Sócrates


Militou no MRPP e destacou-se na defesa de operacionais das FP25. O feitio já lhe valeu multa de três mil euros.

Nas suas visitas à prisão de Évora para se encontrar com José Sócrates, João Araújo corre o risco de se deparar com Paulo Pereira Cristóvão. Um encontro que se poderá adivinhar pouco agradável. É que o ex-inspetor da PJ, detido há duas semanas por suspeita de liderar um grupo que assaltava casas, é o responsável por uma condenação em tribunal que custou ao advogado de 65 anos uma multa de três mil euros por difamação a um procurador do Ministério Público.

O caso remonta a 2006, quando Araújo assumiu a defesa de três empresários acusados de falsificação de documentos e corrupção, crimes investigados por Pereira Cristóvão quando ainda estava na PJ. No documento em que requer a abertura da instrução do processo, Araújo disparou com toda a violência. Qualificou o relatório redigido pelo investigador como "uma peça grotesca, incompetente, pesporrente, ignara e demencial" e louva que Cristóvão "tenha deixado a Polícia Judiciária em paz e tenha optado por ir derramar os seus talentos para a literatura de cordel e para o comentário na TVI, o que, valha a verdade, parece bem mais adequado aos talentos e à criatura". O procurador Alcides Rodrigues, responsável pela acusação, também foi brindado: "O senhor Procurador da República, Dr. AR, não faz, manifestamente, a mais pequena ideia do que seja o crime de falsificação de documento que estultamente imputa aos arguidos." E acrescenta: "O mesmo método de distorção dos factos, a mesma manipulação dos tempos e dos factos foi jubilosamente recebida na acusação pelo senhor Procurador da República Dr. Alcides Rodrigues." João Araújo foi alvo de um processo-crime por difamação e perdeu na primeira instância (depois de renovados insultos a Pereira Cristóvão e a outro magistrado do MP na instrução desse novo processo). Recorreu, mas em 2012 viu o Tribunal da Relação de Évora confirmar a pena inicial: João Araújo teve de pagar uma multa de três mil euros.

O JOÃO LISBOETA

Conta à ‘Domingo’ um colega que o conheceu no liceu Salvador Correia, em Luanda, que João Araújo sempre se destacou por dizer o que pensa. "Era uma pessoa reservada, não falava muito. Mas quando abria a boca a sala ficava toda a rir. Respondia aos professores com a maior desfaçatez", recorda Aníbal Russo. Filho de um juiz de origem goesa, João Francisco Lisboeta Araújo viveu a juventude em Angola com os pais e a irmã, Beatriz. Era conhecido entre os estudantes como o ‘João Lisboeta’, aproveitando o peculiar apelido, herdado da mãe.

Mas foi já em Lisboa que Araújo ingressou na Faculdade de Direito, onde viveu os tempos fervorosos do 25 de Abril de 1974. Tinha 24 anos quando caiu o regime de Marcello Caetano, e alinha à esquerda. Militou no PCTP-MRPP, organização marxista onde se distinguiam figuras como Arnaldo Matos, Durão Barroso, Ana Gomes e José Lamego.

Bom aluno, João Araújo ficaria como monitor do curso de Direito, a dar aulas da cadeira de Direito Internacional Público. O advogado João Nabais foi um dos seus alunos. "Lembro-me dele numa oral, mas confesso que não fui às aulas. O que mais me impressionou foi a prestação dele uns anos depois." João Nabais refere-se ao processo das FP25, o grupo terrorista que matou 13 pessoas nos anos 80. No megajulgamento, que decorreu no Tribunal de Monsanto, em Lisboa, e que contava com cerca de 60 arguidos, João Araújo representava dois operacionais: Humberto Dinis Machado e Maria Helena Pereira, envolvidos em crimes de sangue. Seriam ambos condenados em primeira instância – Humberto, apontado como um dos chefes do grupo, levou uma pena de dez anos de cadeia. Mas Artur Marques, advogado que defendeu alguns dos principais arguidos, lembra as alegações finais de Araújo. "Foram simplesmente as alegações mais brilhantes que eu já ouvi na minha vida." Opinião partilhada pelo colega João Nabais. "Ainda hoje guardo na memória algumas das frases que ele disse naquele dia. Foi brilhante, um discurso cheio de inteligência, de humor, o exemplo supremo do que devem ser as alegações finais de um advogado." Entre indultos e recursos, o processo arrastou-se por vários anos e acabou com a absolvição generalizada dos membros do grupo terrorista.

Artur Marques manteve o contacto com João Araújo ao longo dos anos. Não se espanta com a forma como o colega responde aos jornalistas. "Aquele é o João Araújo de sempre. Tem uma personalidade sarcástica, nunca se sabe se está a falar a sério ou a brincar. Mas claro que se excedeu no insulto à jornalista [a repórter do CM e da CMTV Tânia Laranjo]. Interpreto isso como uma reação infeliz por ele ter ficado muito abalado com a decisão do ‘habeas corpus’ [o pedido de libertação de José Sócrates, que o Supremo rejeitou]."

CURRÍCULO NA BANCA

Estabelecido por conta própria, João Araújo suspendeu a advocacia durante vários anos para assumir a chefia dos serviços jurídicos da Caixa Central de Crédito Agrícola. Cruzou-se com Mário Matias, que integrava a administração do banco: "Trabalhámos juntos durante vários anos e verifiquei que ele tem uma competência profissional a toda a prova", lembra à ‘Domingo’ o atual presidente da Caixa de Crédito de Leiria. João Araújo passaria depois pela Caixa Económica Açoreana, pouco antes de a instituição falir. Aí conheceu António Pinto Ribeiro, advogado que viria a ser ministro da Cultura num dos governos de José Sócrates. João Araújo regressaria depois à advocacia, com escritório em nome próprio. Da passagem pela banca, ficou-lhe um conhecimento aprofundado das leis e do modo de funcionamento do setor. Há quem assegure que este conhecimento sobre o funcionamento das instituições financeiras terá sido um dos fatores que levaram José Sócrates a escolhê-lo para a sua defesa, mas João Nabais sublinha que a experiência de João Araújo vai bem para lá desta área. "Quem se estabelece por conta própria, com um escritório pequeno como é o do Dr. Araújo, apanha todo o tipo de clientes e de processos. Ele tem uma sólida experiência de Direito Penal e é um excelente advogado em várias áreas", explica.

CONHECIDO NO MEIO

Apesar de ser um ilustre desconhecido da opinião pública até assumir a defesa de José Sócrates, João Araújo é uma figura familiar nos meandros da Justiça. "Competente", "desconcertante", "desbocado" e "arrogante" são adjetivos que colegas ouvidos pela ‘Domingo’ lhe atribuem. O amigo João Nabais conta que o homem que responde torto aos jornalistas é o mesmo que, numa ocasião festiva, se lembrou de abrir um estabelecimento muito especial. "Veio com a ideia de abrir um bar. Seria o Habeas Copos e até tinha um slogan: ‘O único sítio onde se pode beber um copo com proteção jurídica’", conta Nabais, explicando que a ideia nunca passou da piada. Fumador compulsivo, João Araújo terá passado por sustos no que à saúde diz respeito, mas nunca perdeu o espírito combativo. "Sempre o conheci assim, com um humor corrosivo. Mas com uma grande capacidade interventiva em tribunal", diz Magalhães e Silva, advogado que também participou no julgamento das FP25.

Rodrigo Santiago, carismático advogado de Coimbra, nota que Araújo tem lidado mal com a exposição aos jornalistas. "Talvez ele não tenha avaliado corretamente o impacto de assumir este caso. É muito desgastante ter de estar sempre a responder a perguntas, ainda por cima nem sempre bem formuladas juridicamente." Rodrigo Santiago foi patrono de Pedro Delille, o advogado que tem acompanhado Araújo na defesa de José Sócrates. "Tenho boa opinião acerca da sua competência", diz o causídico estabelecido em Coimbra.

A condenação por difamação, em Évora, não é caso isolado na carreira de João Araújo. Ao longo dos anos, foi alvo de diversos processos disciplinares na Ordem dos Advogados, por frases venenosas dirigidas a magistrados ou a colegas. O Conselho Deontológico de Lisboa confirma à ‘Domingo’ que existe neste momento um processo disciplinar em curso que tem por alvo o defensor de José Sócrates, mas as regras da Ordem impedem que seja divulgado o que está em causa ou as pessoas envolvidas. Assim como não revela casos passados, por não terem implicado penas de suspensão da licença para o exercício da profissão. "Ele é de uma dedicação extrema, passa horas a ler os processos, e tem uma criatividade fora do vulgar. Quando sente que tem razão, ou que está numa posição de superioridade, não se coíbe de ser arrogante. Faz parte do seu feitio", conta um advogado que esteve em vários processos com João Araújo – contra e a favor do causídico.

Quem o vê a dirigir insultos e impropérios aos jornalistas reconhece o estilo de quem nunca deixa nada por dizer.

SPORTINGUISTA FERRENHO

Quem frequenta o Estádio de Alvalade tem fortes hipóteses de se deparar com João Araújo. Dono de um lugar cativo, assiste aos jogos a fumar charutos. A mulher, Alda Telles, é também uma adepta empenhada. Escreve em fóruns de sportinguistas, mas é mais regular no Twitter, onde publica diariamente mensagens curtas. Quando José Sócrates foi preso, a diretora-geral da empresa de comunicação Fonte escreveu na rede social: "Curioso, durante todo o interrogatório os arguidos não foram confrontados com um único facto concreto de corrupção." O comentário seria apagado poucas horas depois de ser publicado e, desde então, têm sido escassas as referências ao caso. Uma exceção aconteceu em dezembro, quando a entrevista do marido na TVI liderou as audiências. "Embrulha Marcelo", escreveu ela, em referência à popularidade dos comentários de Marcelo Rebelo de Sousa.

O casal já esteve várias vezes na Índia. João Araújo nunca cortou as raízes com Goa e é figura conhecida na Casa de Goa, instituição que procura manter vivo o legado cultural do território conquistado pelos indianos em 1961.

João Araújo tem três filhas, duas das quais seguiram as pisadas do pai ao escolherem a advocacia. Enviuvou relativamente cedo e viria a casar-se com a referida consultora de comunicação, Alda Magalhães Telles, de quem tem um filho, ainda adolescente. Este será amigo de um dos filhos de José Sócrates, facto que ajudou a uma aproximação entre os dois homens. João Araújo começou por representar a mãe do ex-primeiro-ministro, assumiu também a representação de Manuel Costa Reis, atual companheiro de Sofia Fava – ex-mulher de José Sócrates – num processo de partilhas. Costa Reis foi a primeira pessoa a visitar José Sócrates na prisão de Évora.

João Araújo confessou numa entrevista à RTP ser "um amigo recente" de José Sócrates. E fez até uma estranha ressalva para quem quer fazer crer à Justiça e aos portugueses que a relação entre o ex-primeiro-ministro e outro detido no processo – o empresário Carlos Santos Silva – é uma simples amizade. Uma simples amizade em que um (o empresário) empresta largos milhões de euros ao outro (o político e estudante de Filosofia) apenas por uma questão de "solidariedade". João Araújo quis colocar-se fora desse círculo dizendo que Sócrates "não é daqueles amigos a quem eu empresto dinheiro". Estranha atitude de quem considera o antigo líder socialista como "o melhor primeiro-ministro desde o Marquês de Pombal". Frase tão bombástica como a que escreveu numa peça processual: "que há duas coisas de que o requerendo certamente não morrerá: de parto e de medo."

UMA LONGA GUERRA COM MUITAS BATALHAS PERDIDAS

Na última semana, a defesa de José Sócrates sofreu duas pesadas derrotas. Na segunda-feira, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o pedido de ‘habeas corpus’ por prisão ilegal, rejeitando, entre outras, a tese de que o processo não poderia ser apreciado no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa. No dia seguinte, a Relação de Lisboa recusou o recurso da prisão preventiva, sustentando haver fortes indícios de crime e dizendo haver perigo de perturbação da investigação.

Por José Carlos Marques